A Carta
A vida é uma caixinha de surpresas. Boas? Más? Cada um pode
apanhar das mais variadas, e cada um as usa, como melhor sabe, na vida que tem.
Hoje faz 7 anos que perdi os meus pais. Nesse dia ia
apresentar a minha namorada a eles. Estavam a fazer o caminho até Vila Real,
onde trabalhava, e onde vivia. A minha namorada ia também lá ter comigo, ela
trabalhava em Amarante, chamava-se Ana.
Tinha limpo a casa, preparado um ramo de flores das que a
minha mãe mais gosta, tinha comprado um relógio para a colecção do meu pai, e
ia pedir a minha namorada em casamento. Mas tudo nesse dia correu mal. No dia anterior a Ana
perguntou-me como eram os meus pais, o que seria melhor levar vestido, como se
devia comportar a confiança deles. Apenas lhe respondi: Sê para eles aquilo que
eles serão para ti, e vocês irão dar-se bem.
São agora 13:34 minutos, daqui a 10 minutos e há sete anos
atrás recebi um telefonema que mudou para sempre a minha vida: Srº Carlos? Fala
do Hospital de São João, os seus pais tiveram um acidente e estamos a avisa-lo
pois é o familiar mais próximo. Será que se pode deslocar cá?
Tudo caiu. Se naquele momento estava a acabar de ajeitar uma
almofada no sofá, no mesmo instante deixei-a cair, peguei nas chaves do carro e
saí. Esqueci-me de tudo, deixei de ver, de ouvir, e o meu destino era chegar ao
Porto. Vê-los, senti-los, dizer que os amo muito.
Na recepção do hospital, quando me anunciei, foi logo
chamado um enfermeiro, que me acompanhou até uma sala e me perguntou o meu tipo
de sangue. “O” disse eu, sem saber o que estava a acontecer, completamente
alienado de tudo. Pediram-me para tirar sangue, os meus pais precisavam.
Assim, que acabaram de me tirarem, alguém ligou para essa
sala. O enfermeiro só respondeu: Sim, entendi. Pousou o telefone, e voltou a
ligar: Preciso de um psicólogo, disse. E 1 minuto depois deram-me a noticia: Os
seus pais não resistiram. Morreram. Nesse momento vi que o meu telemóvel tocava: era a minha
namorada, mas não consegui atender e já tinha mais de 15 chamadas. Larguei o
telemóvel. Só queria ver os meus pais. Era tudo o que eu tinha na vida, era o
certo e não o duvidoso.
E consegui vê-los, às 19:43. Já na parte de baixo do
hospital, onde ficam os cadáveres. Quando os vi não chorei, não consegui
esboçar um único sentimento. Sentia-me oco, vazio. Só me lembrei de ligar a
Ana, passado este tempo todo. Quando ela atendeu só disse: Não quero saber mais
de ti, estive a tua espera este tempo todo e não foste capaz de dizer nada.
Desligou.
E tudo terminou. Sem pais, sem a mulher que me preenchia e
que ao início do dia eu ia pedir em casamento.
Passados este sete anos,
o sangue que tirei salvou quatro vidas nesse mesmo dia, de quatro
crianças que foram atropeladas por um condutor bêbado. Os meus pais tiveram, no
seu funeral, uma bonita homenagem pelos seus irmãos e sobrinhos.
Agora, passado sete anos, de todas as surpresas que tive
nesse dia, só me falta resolver uma: a Ana.
É por isso que te envio esta carta, Ana. Não para que me
perdoes, mas porque mereces ser feliz e que não penses que te deixei nesse dia
por algum motivo sem razão.
Um beijo,
Carlos
Coisas assim que nos marcam para sempre e ao mesmo tempo nos ensinam o que é a VIDA e o que podemos fazer diante de tais fatos... sempre há escolhas e devemos fazer as melhores. Adorei seu espaço e estou a seguir e, se gosta de poesia, visite o meu...
ResponderEliminarAbraço
E passados 7 anos não tiveste como lhe explicar essa perda? Estranho...
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